sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

EU SEI, MAS NÃO DEVIA!

                                   Manoel Bandeira
Eu sei , mas não devia ...

Eu sei que a gente se acostuma. Mas não deveria!

A gente se acostuma a morar em apartamento de fundos e a não ter outra vista que não seja as janelas ao redor.

E porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora.

E porque não olha para fora logo se acostuma a não abrir as cortinas.



E porque não abre as cortinas logo se acostuma acender mais cedo a luz.

E a medida que se acostuma, esquece o Sol, esquece o Ar, esquece a amplidão.

A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora.

A tomar café correndo porque está atrasado.

A ler jornal no ônibus porque não pode perder tempo da viagem.

A comer sanduíche porque não dá pra almoçar.

A sair do trabalho porque já é noite.

A cochilar no ônibus porque está cansado.

A dormir cedo e pesado sem ter vivido o dia.

A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra.

E aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja número para os mortos.

E aceitando os números aceita não acreditar nas negociações de Paz.

Aceita ler todo dia da guerra, dos números, da longa duração.

A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir.

A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta.

A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.

A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e de que necessita.

A lutar para ganhar o dinheiro com que pagar.

E a ganhar menos do que precisa. E a fazer filas para pagar.

E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagará mais.

E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro , para ter com que pagar nas filas que se cobra.

A gente se acostuma a andar na rua e a ver cartazes.

A abrir as revistas e a ver anúncios. A ligar a televisão e a ver comerciais.

A ir no cinema e engolir publicidade.

A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.

A gente se acostuma à poluição.

As salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro.

A luz artificial de ligeiro tremor.

Ao choque que os olhos levam na luz natural.

Às bactérias da água potável.

A contaminação da água do mar, a lenta morte dos rios.

Se acostuma a não ouvir o passarinho, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães.

A não colher fruta do pé, a não ter se quer uma planta.

A gente se acostuma a coisas demais para não sofrer.

Em doses pequenas, tentando não perceber, vai se afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá.

Se o cinema está cheio a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço.

Se a praia está contaminada a gente só molha os pés e sua no resto do corpo.

Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana.

E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.

A gente se acostuma a não se ralar na aspereza, para preservar a pele.

Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se da faca e da baioneta, para poupar o peito.

A gente se acostuma a poupar a vida que aos poucos se gasta e que de tanto se acostumar, se perde de si mesma. Eu sei, mas não deveria ... colocar este poema aqui, porque você está tão sem tempo, mas é que a gente se acostuma a não ter tempo pra mais nada, e assim esquece de dar um oi para os amigos, de dizer ‘eu te amo’, de beijar e abraçar quem nós gostamos...

Eu sei, eu deveria não me acostumar mais... por isso lembrei de você que entra no meu blog de vez em quando, e gastei um pouquinho do meu tempo pra dizer que pensei em você, pra não me acostumar mais com esse vazio da Vida...